Cidade de Deus é um filme que não termina quando acaba. Isso porque as reflexões trazidas ultrapassam os 130 minutos de duração e excedem a chegada dos créditos.
Lançado em 2002, mas revelando as mazelas sociais de um conjunto habitacional da década de 60 — a própria Cidade de Deus, favela do município do Rio de Janeiro —, a obra ainda assim se mantém extremamente atual, apesar dos seus 19 anos de lançamento. O que é excelente para o diretor Fernando Meirelles e a codiretora Kátia Lund, mas extremamente desagradável para o Brasil.
Pois, mesmo o nome da região remetendo à divindade celestial, a comunidade se distancia em muito do altíssimo — porque de santidade não tem nada. Visto que está mais próxima de uma Sodoma e Gomorra — cidades bíblicas retratadas no livro de Gênesis, que teriam sido destruídas por Deus —, devido ao comportamento execrável e pecaminoso de seus moradores.
No caso brasileiro, transgressões são realizadas sem nenhuma preocupação com a danação espiritual. Ao contrário, almas “pecaminosas” aviltam a ética e a moral, objetivando um paraíso terreno, carregado de prosperidade material e notoriedade.
Posto que o intento é fugir da “entidade maligna” chamada “Desigualdade Social”. Entretanto, para escapar dela, a anomia acaba instaurada.
O que se passa é que muitas famílias de retirantes saem de suas casas, em função de enchentes e incêndios criminosos, e, por isso, buscam refúgio na chamada Cidade de Deus. História que é contada pelo jovem Buscapé, morador da localidade, onde falta infraestrutura, assistência governamental, emprego e condições de sobrevivência.
No relato, eventos subjetivos e coletivos acabam se imiscuindo. Dado que Buscapé retrata o passado, para poder explicar as suas vivências no presente, numa narrativa que dá corpo à marginalidade, ao banditismo e ao tráfico de drogas.
O jovem é um personagem que sofre mutações: por conviver com criminosos, crescer em um ambiente hostil, também decide “pecar” — isto é, roubar.
Consegue uma arma, e parte para o primeiro assalto. Depois, entende que esse “ofício” não lhe traz sucesso, o que o faz abandonar a delinquência, para virar fotógrafo em um jornal.
No entanto, o Trio Ternura pensava diferente: composto por Cabeleira, Alicate, Marreco (irmão mais velho de Buscapé) e, às vezes, pelos garotos Bené e Dadinho, todos enxergavam no furto, a oportunidade de ascensão.
Após assaltarem um caminhão de gás e renderem o motorista, outras violações foram realizadas — como a no motel, idealizada por Dadinho, a criança do grupo.
Criança entre aspas, convenhamos. Porque já fumava maconha, cometia delitos e pensava em ataques; era um “bicho solto”, em suas palavras.
Todavia, por ser o mais jovem, teve que vigiar os arredores, enquanto os demais saqueavam o estabelecimento. Momento no qual um alarme falso é tocado, fazendo com que o bando fugisse.
Adiante, descobrimos que foi Dadinho quem entrou no motel e matou todos os que ali estavam. Cena que evidencia o esfacelamento da infância, a deterioração do amadurecimento precoce e o avivamento de um sujeito aniquilador.
Dadinho, então, é batizado por um pai de santo, recebe um novo nome e passa a ser chamado de Zé Pequeno; vira o bandido mais perigoso do Rio de Janeiro.
Ele toma a comunidade, lidera o tráfico e começa a aliciar jovens, com a promessa de dinheiro, glória e respeito.
O enredo de Cidade de Deus é longo… O crime alicerça as dinâmicas particulares e políticas.
Vide o caso da mulher de Paraíba, que trai o marido com Marreco e acaba enterrada viva — ela, mais uma vítima do feminicídio. Delito que escandaliza os vizinhos e a imprensa marrom. Paraíba, antes informante da polícia, acaba preso.
Contudo, para compreendermos a psicologia e a sociologia desses crimes, é preciso escancarar a exclusão social à qual a periferia é submetida.
Uma vez que o despertencimento coletivo engendra revolta: o desejo de querer ser algo e não poder; de possuir um bem material e não ter como comprá-lo.
Aspecto que faz Zé Pequeno matar deliberadamente, mesmo não sendo vidas que deseja ceifar, mas as instituições que elas simbolizam: o sistema que avilta e inferioriza os pretos de tão pobres, e os pobres de tão pretos — parafraseando Caetano Veloso.
É verdade que nem todos os que se encontram na linha da pobreza se rendem aos deslizes da barbárie, ao “caminho mais fácil”. A favela não deve ser confundida com falta de decoro. Não!
Porém, lembremo-nos de que, na contemporaneidade, o consumo e a tecnologia estão atados para construir a identidade pública. Ou seja, fazem com que indivíduos queiram estar a par das últimas novidades da moda, das redes sociais, da comunicação e dos bens materiais.
Porque figurar as referências do momento é a expressão máxima da cidadania. E o oposto, claro, é a sub-representação — que, dentre outras razões, faz a criminalidade existir.
É sobre a falsa expectativa conferida a quem deseja ser o que não consegue desempenhar.
E, diante disso, cabe a pergunta: vale a “danação” atrás das grades? Vale “pecar” contra as leis terrenas em nome da desigualdade social?
Questões para serem refletidas quando Cidade de Deus acabar. Acabou?