Gosto de pensar que a História atua como retrovisor do automóvel social. Se a ideia lhe pareceu abstrata, explico-me.

Quando resolvemos tirar a habilitação, aprendemos, na autoescola, que é fundamental a visibilidade, para termos compreensão do entorno e realizarmos uma tocada segura.

Contamos com três espelhos que assumem essa responsabilidade — a de auxiliar o condutor: um interno e dois externos (lateral direita e esquerda).

O primeiro deve permitir que o motorista enxergue o vidro traseiro, para ter clareza nas ultrapassagens e facilidade nas balizas.

Já o segundo, os externos, realizam a função de diminuir os pontos cegos das laterais. E, por isso, devemos posicioná-los de forma a deixar uma parcela do pneu à mostra, como referência, e a maior parte voltada em direção à rua.

Ou seja, se a locomoção, com salvaguarda, só ocorre quando olhamos, atentamente, para os retrovisores, do mesmo modo a História se faz necessária, para entendermos a contemporaneidade. Dado que ela é o espelho interno do veículo social, que consultamos quando queremos saber a dimensão trilhada, da longa estrada da vida.

Como coloca o historiador francês Marc Bloch, essa disciplina é a “ciência dos homens no tempo”.

Tempo pretérito cuja essência é pulverizada no presente e no futuro. Portanto, um passado constante, que é fortalecido ou quebrantado, à medida de cada circunstância.

Dito de outra maneira, ao pensarmos na história da arquitetura, descortinamos uma verdadeira mudança na decoração e na disposição dos objetos, ao longo dos anos.

Uma sala neoclássica, por exemplo, se difere, bastante, da renascentista. Visto que tanto as linhas retas, quanto a iluminação natural, passaram a ser mais valorizadas do que a ornamentação e os espaços escuros.

Uma casa bauhaus também não conserva aspectos barrocos. No entanto, somente conseguimos alcançar o Neoclássico, depois que passamos pelo Renascimento e escolhemos dele se distanciar.

Bem como só existiu Bauhaus, porque o Barroco foi ressignificado, do Rococó ao Modernismo.  

Aceleramos o veículo social para edificarmos novas construções.

Contudo, tivemos que nos ater às especificidades de cada era, aos retrovisores, no intuito de progredir.

Todavia, em alguns campos, o avanço veio acompanhado de um descomedido retrocesso.

Exemplo nítido é a política brasileira, com a falta de controle e prudência na gestão dos recursos públicos.

Despautério que resultou na condenação do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, preso em 2016, pela Operação Calicute, 37ª fase da Lava Jato.

Acusado de comandar o desvio de 224 milhões de reais, o que configurou corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, o político, diante da apuração do Ministério Público, lavou R$ 6,5 milhões em anéis, colares e brincos. Razão para que a sua detenção tenha ultrapassado os 280 anos.

Ação deletéria que custou ao Estado do Cristo Redentor, a coroa de espinhos da falência.

Em 2019, o Rio possuía uma dívida de R$ 118 bilhões com a União, segundo o Secretário de Estado da Fazenda, Luiz Cláudio Rodrigues Carvalho. Montante que representava o comprometimento de 283% do orçamento, a efetiva decadência econômica e social.

Situação que, guardada as devidas proporções, para não incorrer em anacronismo, pode ser relacionada com a insensatez do rei Luís XVI, e sua monarquia absolutista.

Ambos regozijavam de luxo, festas no Palácio de Versalhes e toda pompa possível. Isso quando a maioria da população, o Terceiro Estado (burguesia e camponeses), chafurdava no suplício da desigualdade.

A crise foi tão intensa, por conta da má administração dos gastos, que a pobreza culminou em fome e, esta, em rebelião.

A partir disso, foi instaurada a primeira fase da Revolução Francesa, em 1789, chamada de o “Grande Medo”.

Nela, os camponeses invadiram, saquearam e depredaram as casas dos aristocratas. Uma clara manifestação de reivindicação de direitos e de busca por dignidade.

Novamente, por conta da incapacidade dos dois governantes — cada um com sua respectiva função —, de diminuir os pontos cegos da administração pública, fitarem os espelhos laterais, ambos os países (Brasil e França) acabaram reprovados no teste de baliza.

Ambos atropelaram pedestres, quando ultrapassaram o meio-fio, e não respeitaram os limites dos bancos. Também colidiram com as instituições e, no momento da perda total, tiveram que ser guinchados pela anomia.

A falta da História e de um pensamento histórico, eliminou o seguro dos automotores: nada de apólice e nada de “ordem e progresso”; somente o triunfo do declínio.

Logo, engana-se quem pensa que discorrer sobre o pretérito é se repousar ad aeternum sobre ele. É, precisamente, o contrário. O passado serve de experiência para programarmos as nossas ações no presente e idealizarmos as estratégias do futuro.

Sem a História que rememora, carecemos de referências: temos força e vigor, mas elas são dispensáveis no momento em que somos submetidos à direção errônea.

Sem a historiografia, estamos fadados à reiteração dos crimes de outrora. Porque os retrovisores são ofuscados, e a percepção do extenso campo visual acaba arruinada pelo escotoma coletivo.

Entrave que impede a contemporaneidade de ser clara e freia a evolução social. Em vista disso, jamais descartemos os retrovisores.