Bem que Dostoiévski poderia ser considerado um profeta da pós-modernidade. Um João de Patmos do seu tempo, que conseguiu prever o apocalipse dos dias vindouros.
Isso porque o romancista russo colocou nos Irmãos Karamázov (1880), o que marcaria um dos ideais da contemporaneidade: a liberdade. Que é expressa nas entrelinhas da fala de Ivan Karamázov, em razão de que “se Deus não existe, tudo é permitido”.
Quer dizer que na falta de um Deus metafísico, um Leviatã hobbesiano, que nos supervisiona e molda minuto a minuto, cabe, então, a prevalência da noção de liberdade coletiva — independentemente dos olhares de nossos vizinhos —, o que, certamente, demanda uma explicação.
Apesar da referência, leitor, o ponto, aqui, não é o teológico, mas a questão decorrente da passagem da modernidade, para a pós-modernidade.
Dado que depois da Segunda Guerra, as características do pensamento social foram ressignificadas, em virtude dos questionamentos feitos ao período moderno. Este que, por sua vez, foi fundamentado nas tradições do Iluminismo, no apreço pelos valores burgueses e no entendimento de que o conhecimento produziria o progresso.
Entretanto, para contrapor esse juízo, a palavra modernidade ganhou o prefixo “pós”, objetivando inquirir, como coloca o filósofo Terry Eagleton, em As ilusões do pós-modernismo, “as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos (…), ou os fundamentos definitivos de explicação”.
Ou seja, se antes os princípios eram sólidos, hoje, tornaram-se líquidos, para contemplar a pluralidade do “novo” mundo, parafraseando Bauman.
Processo que também é decorrente da incredulidade nas metanarrativas, segundo Lyotard. Uma vez que a crença nos antigos baluartes de “sucesso”, que a história havia prometido, não prosperou.
Vide o marxismo, que ambicionava acabar com as lutas de classes e instaurar o comunismo — o “Éden” terreno —, mas fracassou na proposta. Afinal, o que ele emplacou foi o totalitarismo como projeto de poder existente na China e em Cuba. Logo, nada de paraíso.
E, por não haver mais um consenso universal sobre as ideias — uma metanarrativa que enreda todo o espectro socioeconômico, sociopolítico e sociocultural —, o mundo tem relativizado a sua formação. Buscando instituir, agora, um novo modus operandi: que é alicerçado no individualismo, na multiplicidade e no imediatismo.
O que, consequentemente, clarifica o pensamento de Dostoiévski.
Posto que uma das adversidades que o presente nos legou, foi a de nos acharmos autossuficientes — sempre. De sermos ensimesmados, em nome de uma possível “liberdade”, que aparenta ser “cool”, “good vibes” e “subversiva”.
Pois está na moda criticar a moda, está em voga ser o “diferentão”. Quanto maior for a esquisitice, melhor.
Porém, todas essas condutas, na realidade, procuram mascarar, em muitos momentos, um self desacreditado com a própria existência.
Um indivíduo que ainda não encontrou o seu verdadeiro propósito, numa conjuntura em que a liberdade extrema, opera como detenção para a consciência enferma.
Todavia, é evidente que devemos realçar as nossas identidades. Mas vale reforçar a indagação de que se todas as nossas certezas são incertas e a metamorfose é contínua, tudo é permitido, correto? Não! É evidente que não.
Porque até nos lemas de ordem do movimento parisiense de 68 — o “É proibido proibir” e “Deus está morto. Nietzsche está morto. Marx está morto. E eu mesmo não me sinto muito bem” —, não havia o consentimento com as condutas humanas “sem limites, desordeiras e individualistas”.
Os lemas, diferentemente, ansiavam por uma França mais equânime e que respeitasse os direitos estudantis e trabalhistas. Porquanto a ética libertária só se firma nos próprios limites éticos.
O que significa que não é possível ser totalmente avesso ao establishment, sem que isso resulte em grandes obstáculos.
Ademais, com as evoluções tecnológicas, vários mitos que, antes, procuravam explicar a existência humana acabaram dessacralizados. O que vale para comportamentos e doutrinas que, outrora, tinham o uníssono amém.
Contudo, somente distinguindo os avanços, dos retrocessos, conseguimos, paulatinamente, caminhar para algum desenvolvimento.
Por fim, mesmo entendendo que a questão dostoievskiana tem cunho filosófico e não moral, cabe pontuar a eficácia da temperança.
Como deveria dizer o poeta romano Horácio: “Est modus in rebus” (Há uma medida nas coisas). Ou seja: se até a pós-modernidade tem que estar submetida à sensatez, imagina nós?
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PS: Este texto está ilustrado com a obra Limit (2018), de Thiago Boecan.