A mudança na sociedade não se faz, apenas, com denúncias ou com o repúdio moral do racismo

Nos dias que seguem, há certas questões que espelham o chamado fluido massa negativa: aquele que, quando empurrado, em vez de ir para frente, acelera para trás. O que bem representa o Brasil, e a discriminação na sociedade.

Isso porque, mesmo após o 13 de maio de 1888, momento da abolição da escravidão, dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública atestam que, na atualidade, ao contrário do que se esperava, aumentaram em 67% os casos de racismo; e em 32,3%, os de injúria, entre 2021 e 2022.

Ocorre que, se esse é um cenário no qual experienciamos um presente-passado — ou, a depender da percepção, de estarmos num passado-presente —, certo é que se faz necessário lembrarmo-nos dos dizeres da filósofa alemã Hannah Arendt (1906 – 1975), na obra Liberdade para ser livre“Apenas aqueles que conhecem a liberdade em relação à necessidade podem apreciar por completo o significado da liberdade em relação ao medo, e só aqueles que estão livres de ambos — necessidade e medo — têm condições de conceber uma paixão pela liberdade pública”

Contextualizando: historicamente, grilhões foram colocados em certos grupos sociais, para que sobreposições identitárias se consumassem. Além disso, o medo do declínio civilizatório, provocado pelo falso entendimento de que a miscigenação degeneraria a “raça pura” — tese de Arthur de Gobineau (1816 – 1882) —, acabou por desenvolver, no Brasil, fronteiras simbólicas rígidas, fundamentadas em estigmas e estereótipos negativos, para os não detentores de traços eurocêntricos.

Adversidade essa que, há 135 anos, vem contrapondo, justamente, o entendimento de Arendt: a possibilidade de uma liberdade que transcende medos e necessidades, e tem paixão pela liberdade pública.

Cabe perguntar, portanto, como mudar esse percurso. E, nesse sentido, vale frisar o que Silvio de Almeida apresenta no livro Racismo estrutural: que a “mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas”.

Práticas como as ações educacionais que trazem letramento étnico-racial. Metodologias que destacam a potência da cultura afro-brasileira: a importância da capoeira, do samba, da culinária ancestral e do maculelê para a nossa constituição. Também projetos que fortalecem a identidade e a pluralidade dos alunos oriundos de grupos marginalizados. 

Mas não só. Pois desconstruir o mito da democracia racial, utilizar de linguagem inclusiva, ter docentes negros em salas de aula e reconhecer que o racismo é estrutural e tem estruturado as dinâmicas políticas, econômicas e sociais dos nossos sistemas, minimiza igualmente a incidência de rótulos e de inferiorizações coletivas.

Ademais, promover uma pedagogia engajada, ter materiais didáticos adaptados para a Lei 10.639, criar ambientes de formação crítica e de educação continuada, bem como apoiar políticas afirmativas, são medidas que quebrantam as desigualdades e as opressões institucionais. 

Por fim, compete, agora, ficarmos com a filosofia dos povos bantus, grupos etnolinguísticos africanos, que criaram o Ubuntu. Conceito esse relacionado à interdependência e à valorização da ligação humana. Como é colocado: “Eu sou porque nós somos”. Ou seja, reconhecer que, para existir, dependemos uns dos outros, e que, por isso, mutuamente devemos cooperar. 

Assim, retomamos os dizeres de Hannah Arendt, sobre a paixão pela liberdade pública. No caso, a paixão pela emancipação de nossos semelhantes.