“Você tem sede de quê?/ Você tem fome de quê?”. Perguntava a música Comida, do Titãs. E Carolina Maria de Jesus, a poetisa negra e escritora do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960), facilmente responderia à indagação dizendo: de justiça, igualdade, reparação histórica, palavras e vida, muita vida.

Porque a fome não a paralisou. A sede não a fez sucumbir às misérias humanas. E, mesmo sendo favelada, isso não a impediu de nutrir a agudeza literária, de desvelar seu microcosmo, apesar das atribulações cotidianas, do pouco domínio ortográfico, das panelas vazias, das desfaçatezes dos políticos…

Porém, romantizar a biografia de quem, a duras penas, conseguiu sobreviver, jamais sobejar, é, no mínimo, cínico e hipócrita — por isso, não gratularei o sofrimento alheio. Contudo, vale salientar, ainda, que Carolina não viveu sua dor para escrever. Ao contrário, foi diante dos contratempos, que ela fez ferver o vocabulário e a escrita, para reverberar a energia pulsante, de uma mãe e dona de casa.

Ela tinha fome — muita. E o imperativo categórico de sua narrativa coloca que o apetite insaciável mata: “Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos”.

O livro segue e, atualmente, a história se repete: dados apontam que mais de 125 milhões de brasileiros, no último trimestre de 2020, não comeram em quantidade e qualidade ideais, desde a chegada do coronavírus. Ou seja, a insegurança alimentar tem gritado socorro e Quarto de Despejo  ganhado atemporalidade.

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Fila para o recebimento de ossos em Cuiabá (Foto: Reprodução/G1)

Adiante…, mas sem comida. Maria de Jesus continua recolhendo lixo e materiais reciclados, no intuito de encontrar algum pedaço de carne para si e para os seus. Em 2021, pessoas se acumularam na porta de açougues para receber doações de ossos, em várias capitais do país.

Ao G1, Samara Rodrigues de Oliveira, dona de um estabelecimento em Cuiabá, revelou que “tem gente que pega [os fragmentos] e já come cru, ali mesmo”. Porque “o custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animaes”, discorreu Carolina.

Lembremo-nos, também, que: a penúria alimentícia, como corolário da desigualdade, é, sobretudo, rastro de um Brasil do “ontem-hoje”. Ela escancara a inutilidade humana, seu opróbrio, sua indignidade, sua pequenez.

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”, falava a escritora.

Entretanto, tal como os milhares de brasileiros abaixo da linha da pobreza, que tiveram que se contentar com o recolhimento de ninharias, restos, para ansiar a aurora do porvir, e nisso encontrar a fagulha da felicidade, a Mãe Carolina regozijava quando tinha o que preparar.

“É quatro horas. Eu já fiz o almoço — hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está ao alcance do favelado, fico sorrindo atoa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante.”

Carolina, de fato, não teve medo do pior. E Projota, rapper brasileiro, canta algo que faz jus às vivências da poetisa: “Se o diabo amassa o pão, você morre ou você come?/ Eu não morri e nem comi, eu fiz amizade com a fome”.

Assim, terminamos o livro entendendo a força do querer como potência da superação.